quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Como em tudo, como olhas para o copo que contém 1/2 de água?

Dei de caras com isto agora há pouco, quando cheguei a casa, vinda de onde? Ironicamente, do modelo/continente/whatafuck onde trabalhei durante quase cinco anos. E isto deu-me que pensar. E a minha cabecinha ficou a fazer um rewind. Porque é que eu guardo boas recordações daquele sítio e ainda mantenho contacto com algumas das colegas? Mas ao mesmo tempo, porque é que evito fazer as minhas compras lá? 
Esta trabalhadora, que está exactamente na posição onde eu estive, tem as experiências dela, reconheço umas, outras são completamente diferentes. E depois pensei: será que foi ela que me atendeu hoje na caixa e o sítio onde estive mudou assim tanto? Ou tive eu uma sorte incrível na maneira como fui tratada a maioria das vezes aquele tempo todo? Será que na minha altura era uma coisa, e agora, sabe-se lá por causa do quê ( puta da crise que é desculpa para tudo! ), tudo mudou para pior? 


Por partes (descubra as diferenças):
  • 1 – salário
  • Trabalho 20h semanais em troca de 260€ mensais, o que dá pouco mais de 3€ por hora. Que isto se possa pagar a alguém em 2015 devia ser motivo de vergonha para um país inteiro. Que seja um milionário a pagar-me esta esmola devia dar pena de prisão efectiva.   Não, não é bom o dela nem era bom o meu. Como poderia? Não fazemos trabalho qualificado. É verdade que é o dinheiro que nos paga as contas, todos precisamos de sustento, mas o que não trouxe em dinheiro, trouxe em experiência e toneladas de material de formação de atendimento e serviço ao cliente. Apesar da minha memória de elefante, não me consigo lembrar de um trimestre em que não me fosse dada formação. E era mesmo dada, não era a minha assinatura num papel como se tivessem perdido tempo comigo. Ali, o tempo foi investido. Em todos os meus trabalhos seguintes, usei muito do que aprendi ali. 
  • 2 – precariedade
  • Já vou no terceiro ‘contrato’ de seis meses e ainda não passei a efectiva. Quando chegar a altura em que poderei finalmente entrar para o quadro, serei dispensada como tantas outras. A explicação para a quebra brutal na natalidade está encontrada: afinal, alguém consegue ter filhos nestas condições?  Nada a dizer. Fiz três contractos e efectivei. Acredito que possa ter algo a ver com a alegria com que ia para o trabalho, com a atenção que prestava aos clientes. Assim como acredito que colegas nas mesmas condições que eu, foram convidadas a não regressar. Alguém gosta de ser atendido por um funcionário de trombas? 
  • 3 – trabalho não remunerado fora do horário de trabalho
  • Se o futuro é uma incógnita, o presente é sempre igual: todos os dias, sem excepção, trabalho horas extra grátis que me são impostas. O meu horário de saída é às 15h mas, depois dessa hora, ainda tenho para executar várias tarefas obrigatórias, que me levam entre 15 a 20 minutos diários, como arrumar os cestos das compras e os artigos que os clientes deixam ficar na caixa ou guardar o dinheiro no cofre. No quase ano e meio que levo a trabalhar no Continente, devo ter saído uns 5 dias, no total, à hora certa. E já cheguei a sair uma hora e meia depois das 15h, apesar de os meus superiores saberem muito bem que dali ainda vou para outro trabalho e de, por isso, eu ter sempre imensa pressa para não me atrasar   Nunca tal me aconteceu. Recebi todos os minutos que trabalhei para além do meu horário normal. Como era trabalhadora-estudante, sabiam que me interessa fazer horinhas a mais, eram uns belos trocos. E se havia inventários pequenos, em que não eram precisos todos os trabalhadores e iam apenas os primeiros a manifestar interesse, alguém me inscrevia para eu não perder a "vaga", porque sabiam que eu os queria fazer. E até me deixavam colocar os meus cd´s piratas, para o tempo passar mais depressa. Belas madrugadas a contar latas de atum... ( eram mesmo, conseguia divertir-me ). 
    • 4 – trabalho em dias de folga
    Para perpetuar a falta de funcionários na loja, obriga-se aqueles que lá estão a trabalharem pelos que fazem falta, oferecendo assim todos os meses algumas horas do seu tempo de vida e de descanso ao patrão, que deste modo poupa no número de salários a pagar. Mais absurdo: num dia em que esteja de folga, posso ser convocada para ir à loja para fazer inventário. Sou obrigada a ir, apesar de estar na minha folga, e apenas posso faltar mediante justificação médica. E, como se não bastasse, até já aconteceu eu ser avisada no próprio dia da folga. Trabalhei nos dias em que era suposto, 4 horas na sexta-feira, oito no sábado e oito no domingo. Se de facto, fossem precisas mais pessoas nas minhas folgas, que eram durante a semana, telefonavam-me a pedir O FAVOR de ir trabalhar, e ficava logo combinado se me iriam compensar com uma folga ou se as horas seriam pagas. 
    • 5 – cada segundo de exploração conta
    Neste ano e meio, cheguei uma única vez 5 minutos atrasada e a minha superior foi logo bruta e agressiva comigo, tendo-me gritado e agarrado pelo braço, apesar de supostamente haver uma tolerância para se chegar até 15 minutos atrasada. Nunca mais voltei a atrasar-me. Nem 10 segundos. (Já sair pelo menos 15 minutos mais tarde do que a hora prevista, isso é todos os dias.)  Sobre entradas e sáidas, era pacífico. Cumpria os horários, chegava a horas. Parabéns para mim, que tenho o dom de me atrasar para tudo! A única cena a que assisti, e foi mesmo uma cena, tal o festival que a moça fez, foi não permitirem essa pessoa trabalhasse nesse dia, depois de MESES de avisos consecutivos sobre os seus atrasos constantes. Muita paciência tiveram eles, na minha opinião. Havia no entanto outra questão relativa aos segundos e essa, sim, deixava-me fora de mim. Os artigos que eu registava na caixa eram contados ao minuto! E se estava num número que alguém não achava suficiente, telefonavam para a minha caixa para me alegrarem o dia de trabalho com um "despacha-te!, estás a demorar muito!" 
    • 6 – formatação do corpo
    Relativamente à aparência física, devemos formatá-la meticulosamente, ao gosto sexista do patrão. Na loja onde trabalho, várias colegas tiveram por isso de eliminar os seus pírcingues, apagar também a cor das unhas (lá só é admitido o vermelho) e uma até teve de mudar de penteado. O patrão quer que nos apresentemos como autênticas bonecas. Faz lembrar os escravos que eram levados para as Américas, a quem se retiravam as suas marcas corporais para serem explorados sem outra identidade que a de escravos (seres humanos transformados em mercadorias). É assunto controverso. Era-o na altura naquele trabalho e continua a ser neste, onde estou agora. Se por um lado, não é o aspecto, o físico ou a roupa de um trabalhador que definem a sua competência ou o seu profissionalismo, também é verdade que gosto de ser atendida por alguém com o tal do "bom aspecto", essa coisa tão difícil de definir. Unhas vermelhas? Não, não era permitido. E o que eu adoro ter as unhas assim. Portanto, na sexta feira à tarde, eu vestia a farda e fardava as minhas unhas com o clássico begezinho, de que também gosto muito. Se todas usávamos a mesma farda, também me parecia razoável que a imagem geral fosse uniformizada. E isto porquê? Porque antes de haver tantas regras ( e elas existem por alguma razão ), foi preciso chamar a atenção para a higiene pessoal de certas pessoas. Sim, chegou a haver formação sobre o assunto. E sim, havia mesmo necessidade. Se adorava estar limitada na minha imagem? Não, mas nunca olhei para o meu posto de trabalho como o palco onde me expressar visualmente. Expressava-me sim, mas enquanto trabalhadora. Defini ali o meu estilo profissional, a minha postura, trabalhei o meu atendimento ao cliente. Onde trabalho hoje, isso vale milhões! 
  • 7 – pausa para comer/urinar/descansar é crime

  1. Mas o pior de tudo é mesmo o que acontece durante o tempo de trabalho. Os meus superiores querem que eu esteja as 4 horas sentada a render o máximo que é humanamente possível, por isso, dificultam ao máximo as minhas pausas – que são legais e demoraram séculos a conquistar – para ir comer qualquer coisa ou ir simplesmente à casa de banho. A única coisa que me autorizam a levar para junto de mim, no meu posto de trabalho na caixa, é uma garrafinha de água previamente selada e nada mais. De resto, o que levar para comer e beber (sumos e iogurtes líquidos não podem ir comigo para a caixa) tenho que deixar no Posto de Informações e só tenho acesso quando da caixa telefono para lá. Normalmente, no Posto, fazem que se esquecem desses pedidos, passando uma eternidade até eu finalmente conseguir ir comer. E, quando a muito custo lá consigo obter autorização para ir comer, sou pressionada para ser ultra rápida, pelo que em vez de mastigar estou mais habituada a engasgar-me. O mesmo acontece com as idas à casa de banho, sempre altamente dificultadas.  Aqui o caso muda muito. Água? Estava guardada lá atrás, no bastidor. Bebia quando não tinha clientes para atender. Ora... eu trabalhava em part-time, apenas aos fins de semana, que é precisamente quando há mais movimento. Quando é que não há clientes ao fim de semana? Quando a loja está fechada! Não podia ter uma garrafa de água no meu posto de trabalho. Hoje posso agradecer a esta empresa as infecções urinárias e restantes problemas de rins. E posso agradecer as varizes que tenho por ter sido obrigada a trabalhar 8 horas seguidas de pé, num local com menos de 1m2. 

  • 8 – gerem-nos como se fôssemos animais
Há uns tempos, uma colega sentiu-se mal quando estava na caixa, fartou-se de pedir licença para ir à casa de banho, mas foi obrigada como de costume a esperar tanto, tanto que lá se vomitou, quase em cima de um cliente. Episódio estúpido, apenas isso.

Não gosto de pensar em mim como sendo uma pessoa ingrata, por isso não posso deixar os agradecimentos ficarem por aqui. Para o melhor e para o pior, o primeiro molda-nos para a vida. É o que marca mais e é o que vai ser servir de referência. Pelo menos, comigo foi assim. Não tive as más experiências que esta trabalhadora teve, talvez por ter tido a sorte de trabalhar com pessoas boas que tinham o azar de serem chefes numa empresa má. Trouxe muitas aprendizagens, boas recordações, habituei-me a um nível de exigência pouco visto. Quando, no meu actual trabalho, alguem começa a panicar com o cliente mistério, eu encaro isso com a maior das naturalidades, porque me habituei a trabalhar como se todos os clientes fossem o cliente mistério. Elevaram-me a fasquia e eu decidi mantê-la lá alta, em todos os trabalhos por onde passei. Aprendi o que era vestir a camisola, uma camisola que sei agora que não era minha e não me servia. Mas caramba, foi com orgulho que recebi 4 anos consecutivos o prémio de melhor hipermercado modelo. A nível nacional. O que era o prémio? Dinheirinho do bom! Se me saiu do corpinho? Olaricas! Saiu, pois! Mas conheci o sabor de fazer parte de uma equipa vencedora. Tem, de certeza, que ver com as pessoas com quem partilhava os dias, os clientes, os desafios, as queixas, os abusos, também os houve. 
Nada do que escrevi deve ser entendido como um reparo ou uma crítica, ela contou a experiência dela e isso fez-me pensar e quis relembrar a minha.
À trabalhadora que escreveu isto e a todos os trabalhadores que se encontram nesta e noutras condições, apenas um reparo: não te fiques pelos blogs e pelas redes sociais.  A.C.T. 




( merda para isto, não estou a conseguir formatar!! ) 

Sem comentários:

Enviar um comentário